E se uma luz aparecer no fim do
túnel, não hesite em segui-la, este é o caminho para sair do transe – dizia a
psicóloga, enquanto retornava-me de uma regressão.
Desde criança tenho o mesmo
sonho, estou caminhando por uma rua deserta e tão logo dezenas e centenas de
pessoas me atacam, me espancam e eu morro. Porém, de alguma maneira continuo
escutando o que elas dizem a meu respeito. São coisas tão ruins. No sonho chego
a aceitar a morte tão brutal. E, pronto, acordo. Assustado. Cansado. Suado.
Quando fiz 15 anos escutei meus
pais conversando sobre isso. Receavam que eu fosse um psicopata juvenil ou
depressivo com transtorno compulsivo. Desde então passei a frequentar
psicólogos, psicoterapeutas, psiquiatras, padres, pastores, centros espiritas.
Pouco sucesso teve. Já adulto retornei para o psicólogo, que na realidade era
uma psicóloga muito bonita, usava sempre saias de cós alto e tinha belas
pernas. Só por isso já valia os 350 reais e uma hora do meu dia.
Estava com 27 anos. Solteiro.
Formado. Acadêmico. Morava sozinho. Apreciava um bom vinho. Algumas namoradas,
porém, ainda preferia as acompanhantes, pouco diálogo, sem cobranças, algumas
noites por semana. Estava perfeito. Tinha mais tempo para ler, estudar e
assistir meus filmes prediletos.
Não sabia bem do meu futuro.
Jamais fiz algo grande na vida. Não me destacava na escola e durante a
faculdade o ritmo de manteve. Porém, vieram os casinhos, os primeiros cigarros
e baseados, as festas, as discussões filosóficas e teóricas a beira do rio, os
amigos... Que saudade tenho deles. Faziam-me sentir vivos.
Os dias pela minha janela eram
sempre cinza. Poucas vezes ia à praia apesar de ter vontade. E dentre os vários
discos sempre escutava o mesmo. Um dia caminhando na rua encontrei um panfleto
da tal psicóloga, que dizia fazer regressão, sessões de terapia comum e outros
tipos de serviços. Tornei a lembrar do meu sonho. Será que seria uma saída? Ou
será que apenas irritaria mais um profissional?
Quando adentro aquele ambiente
irritantemente clean and white,
com cópias dos quadros mais famosos da arte renascentista, barroca e
modernista, me dirijo até uma recepcionista modesta, que me indica o
funcionamento das coisas. Cético e querendo provar que aquele sonho seria para
sempre sem explicação, marco minha hora.
Dia seguinte estou de volta.
Ansioso e irritado com aquele ambiente tão exposto, claro, branco... Minha hora
chega. Esperando uma senhora de 45 anos, com seu jaleco e mais quadros de
pintura... Entro na sala e encontro uma jovem bela de 28 anos, lindas pernas,
sem jaleco, sem quadros e um lindo sorriso de bem vindo.
Hipnotizante – digo a ela. Ela
faz uma expressão de curiosa e me indaga. Você – respondo a ela. Ela sorri mais
uma vez, olha pra baixo desligando uma chamada no celular que mesmo no modo
silencioso, insistia em chamar com o piscar das luzes. Começamos a conversar
sobre as razões que me levaram até ali. Ela toma conhecimento do meu sonho.
Trocamos primeiras impressões e ela pouco anota coisas sobre mim.
Desde esse primeiro contato, me
sentia viciado nas sessões de prazer e beleza que ela me oferecia. Meses
depois, tornei-me mais sociável, risonho, pintei as paredes do meu apartamento
de branco, fui muitas vezes a praia, deixei as acompanhantes de lado e busquei
por mulheres com as quais poderia ter relacionamentos sólidos. Mas algo me
faltava.
Passei a perceber que minha
vida tinha cor e todas as cores vinham daqueles malditos quadros na recepção da
psicóloga. O ambiente lá já não me irritava, pelo contrário, me sentia
confortado e num bem estar tremendo. Sorria ansioso esperando para mais uma
sessão, ainda mais por que começaríamos a regressão. Um sucesso. Ela era
incrível. Inteligente. Linda. Esperta. Tinha um ótimo senso de humor. Neste dia
eu era o último. Esperei ela fechar o consultório. Sentia-me excitado e atraído
por ela. Estávamos tão próximos. Decidi fazer um convite.
Não posso Miguel, tenho alguém
me esperando para jantar, quem sabe num próximo momento – respondeu ela sem
graça e muito educada. Fiquei frustrado, mas tudo bem, num próximo encontro. Sai
de cabeça baixa e olhando vez ou outra para trás observando ela abrir a porta
do carro. Enfim, não foi um fora, tentava me convencer.
Passei a noite pensando nela,
estava apaixonado? Seria isso? Só sei que eu a queria muito. Nem pensava numa
possível rejeição. Abri uma garrafa de vinho, precisava esquecer um pouco dela,
aquele sorriso, as pernas, o modo de me olhar. No transe bêbado, me peguei
dançando com ela na sala, completamente insano e louco de desejo. Quando a
deitei no sofá, ela sumiu por entre minhas mãos. Cai sobre o móvel, frustrado.
Mesmo envolto de sentimentos
tão difíceis de lidar e segurar a barra, eu continuei indo as sessões, mesmo
não conseguindo atingir os objetivos da terapia. Estava perturbado com aquela
imagem. Levava flores, bombons, livros. Ela sempre foi tão educada. Até o dia
que disse que não poderia mais me atender, pois eu estava confundindo nossa
relação e o tratamento não apresentava resultados positivos. Ela me indicaria
outro psicólogo. Eu não aceitei. Sai
gritando e batendo as portas do consultório. Deixando-a assustada e receosa
comigo.
Dia seguinte tentei me
retratar, ela foi educada e diplomática, mas insistia que não poderia mais me
atender. Meu erro. Fiquei mais uma vez furioso. Num ato desesperado parti pra
cima dela. Tentando beija-la. Fui expulso do consultório por alguns homens que
nem sei de onde vieram.
Retornei para meu apartamento
transtornado, metade de mim se arrependia, a outra estava furiosa. Queria tê-la
de qualquer modo. Juntei o dinheiro que tinha, comprei garrafas de vinho e
algum pó. Passei a noite num submundo particular, onde só existia ela e eu.
Obcecado, queria mais. Tinha certeza que ela me queria, o modo como me olhava
quando eu a elogiava, ela também era culpada por aceitar durante todo esse
tempo meus carinhos e amizade. Esses pensamentos foram tomando forma na minha
cabeça e a ideia de que deveria retornar ao consultório também.
Sem dormir, comer. Sai cedo do
apartamento, certo de que ela deveria me entender. Esperei a secretária entrar
e fui atrás, fazendo ela de refém trancada no banheiro. Não muito tempo depois
chegara a psicóloga, sem saber pra onde caminhava, entrou a porta olhando
celular e dando bom dia para a recepcionista, sem atentar que era eu sentado
atrás da mesa. Quando viu assustou-se e quis sair, mas terminou caindo. Minha
oportunidade para fechar a porta principal e buscar a redenção.
Meio sem jeito e bastante
transtornado a ataquei pedindo desculpas, implorando compreensão, falando dos
meus sentimentos e o quanto precisava dela comigo. Ela me olhava sem aquele
sorriso lindo, assustada, acabrunhada e como alguém nesta situação passou a me
empurrar, gritar por socorro. Num só tempo, a recepcionista também batia na
porta do banheiro e gritava socorro. Ela devia estar com o celular. Não demorou
muito para que outras pessoas começassem a bater na porta do consultório
insistentemente. Ela me dizia que eu havia perdido que deveria me entregar e
que tudo ficaria bem.
Eu só pedia que ela me olhasse
de novo daquele modo, com o sorriso... Quis beija-la, ela me estapeou. Fiquei
em fúria e a estapeei de volta. Deixando-a no chão. Tentei me desculpar, tarde
demais, ela estava furiosa e gritava bastante. Tentei me aproximar, ser mais
cordial, mas ela me arranhava e me empurrava. Eu a queria, tudo aquilo estava
me excitando. Eu a agarrei mais forte, joguei no chão e queria possui-la. Ela lutava
bastante, gritava e esperneava. Até que quis cala-la e quase a sufoquei.
Os homens que batiam insanos na
porta conseguiram arromba-la e viram uma cena de filme. Eu, o vilão, sobre a
mocinha. Todos juravam que a tinha estuprado. Enfurecidos me atacaram, me
batiam e deflagravam insultos. Porém, num ato de sorte consegui escapar, caindo
ainda no corredor, levantando continuei correndo para sair do pequeno prédio
comercial no centro da cidade. O alarde no prédio foi geral. Todos saíram
correndo atrás de mim.
Consegui engana-los e descer
pela escada de incêndio que dava para um beco. A rua estava deserta, calma,
poucas pessoas eram vistas. Até que um dos homens que me caçava me avistou e
avisou os demais. Num instante eu estava cercado por homens que me espancavam e
me insultavam. Terminado a sessão de violência em plena via pública, eu já não
enxergava, somente escutava longe as pessoas falarem a meu respeito, algumas
pessoas falavam que era louco, que já vinha ameaçando a psicóloga. Uma viatura
passou no lugar e foi averiguar o fato.
Ele estuprou uma mulher, além
de estuprador era louco, tinha mesmo que morrer – dizia um homem desconhecido. E
no meu último fio de consciência esforçava-me para lembrar onde já conhecia
essa história...meu sonho...
Depois de morto, estamparam no
jornal “estuprador é morto em via pública”, bem como diversos depoimentos de
pessoas que se diziam “cansadas de loucos e bandidos como eu”, que a “justiça
do povo era sempre mais eficaz”, que “o povo sempre faz justiça com as próprias
mãos”.
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