Nas esquinas da vida...

"Se o tivesse escrito para procurar o favor do mundo eu teria me ornado de belezas emprestadas ou teria me apresentado com minha melhor pose. Quero que me vejam aqui no meu modo de ser simples, natural e ordinário, sem afetação nem artifício: é a mim mesmo que pinto". (M. de M.)

quinta-feira, 23 de agosto de 2012

Sonhos



E se uma luz aparecer no fim do túnel, não hesite em segui-la, este é o caminho para sair do transe – dizia a psicóloga, enquanto retornava-me de uma regressão.
Desde criança tenho o mesmo sonho, estou caminhando por uma rua deserta e tão logo dezenas e centenas de pessoas me atacam, me espancam e eu morro. Porém, de alguma maneira continuo escutando o que elas dizem a meu respeito. São coisas tão ruins. No sonho chego a aceitar a morte tão brutal. E, pronto, acordo. Assustado. Cansado. Suado.
Quando fiz 15 anos escutei meus pais conversando sobre isso. Receavam que eu fosse um psicopata juvenil ou depressivo com transtorno compulsivo. Desde então passei a frequentar psicólogos, psicoterapeutas, psiquiatras, padres, pastores, centros espiritas. Pouco sucesso teve. Já adulto retornei para o psicólogo, que na realidade era uma psicóloga muito bonita, usava sempre saias de cós alto e tinha belas pernas. Só por isso já valia os 350 reais e uma hora do meu dia.
Estava com 27 anos. Solteiro. Formado. Acadêmico. Morava sozinho. Apreciava um bom vinho. Algumas namoradas, porém, ainda preferia as acompanhantes, pouco diálogo, sem cobranças, algumas noites por semana. Estava perfeito. Tinha mais tempo para ler, estudar e assistir meus filmes prediletos.
Não sabia bem do meu futuro. Jamais fiz algo grande na vida. Não me destacava na escola e durante a faculdade o ritmo de manteve. Porém, vieram os casinhos, os primeiros cigarros e baseados, as festas, as discussões filosóficas e teóricas a beira do rio, os amigos... Que saudade tenho deles. Faziam-me sentir vivos.
Os dias pela minha janela eram sempre cinza. Poucas vezes ia à praia apesar de ter vontade. E dentre os vários discos sempre escutava o mesmo. Um dia caminhando na rua encontrei um panfleto da tal psicóloga, que dizia fazer regressão, sessões de terapia comum e outros tipos de serviços. Tornei a lembrar do meu sonho. Será que seria uma saída? Ou será que apenas irritaria mais um profissional?   
Quando adentro aquele ambiente irritantemente clean and white, com cópias dos quadros mais famosos da arte renascentista, barroca e modernista, me dirijo até uma recepcionista modesta, que me indica o funcionamento das coisas. Cético e querendo provar que aquele sonho seria para sempre sem explicação, marco minha hora.
Dia seguinte estou de volta. Ansioso e irritado com aquele ambiente tão exposto, claro, branco... Minha hora chega. Esperando uma senhora de 45 anos, com seu jaleco e mais quadros de pintura... Entro na sala e encontro uma jovem bela de 28 anos, lindas pernas, sem jaleco, sem quadros e um lindo sorriso de bem vindo.
Hipnotizante – digo a ela. Ela faz uma expressão de curiosa e me indaga. Você – respondo a ela. Ela sorri mais uma vez, olha pra baixo desligando uma chamada no celular que mesmo no modo silencioso, insistia em chamar com o piscar das luzes. Começamos a conversar sobre as razões que me levaram até ali. Ela toma conhecimento do meu sonho. Trocamos primeiras impressões e ela pouco anota coisas sobre mim.
Desde esse primeiro contato, me sentia viciado nas sessões de prazer e beleza que ela me oferecia. Meses depois, tornei-me mais sociável, risonho, pintei as paredes do meu apartamento de branco, fui muitas vezes a praia, deixei as acompanhantes de lado e busquei por mulheres com as quais poderia ter relacionamentos sólidos. Mas algo me faltava.    
Passei a perceber que minha vida tinha cor e todas as cores vinham daqueles malditos quadros na recepção da psicóloga. O ambiente lá já não me irritava, pelo contrário, me sentia confortado e num bem estar tremendo. Sorria ansioso esperando para mais uma sessão, ainda mais por que começaríamos a regressão. Um sucesso. Ela era incrível. Inteligente. Linda. Esperta. Tinha um ótimo senso de humor. Neste dia eu era o último. Esperei ela fechar o consultório. Sentia-me excitado e atraído por ela. Estávamos tão próximos. Decidi fazer um convite.
Não posso Miguel, tenho alguém me esperando para jantar, quem sabe num próximo momento – respondeu ela sem graça e muito educada. Fiquei frustrado, mas tudo bem, num próximo encontro. Sai de cabeça baixa e olhando vez ou outra para trás observando ela abrir a porta do carro. Enfim, não foi um fora, tentava me convencer.
Passei a noite pensando nela, estava apaixonado? Seria isso? Só sei que eu a queria muito. Nem pensava numa possível rejeição. Abri uma garrafa de vinho, precisava esquecer um pouco dela, aquele sorriso, as pernas, o modo de me olhar. No transe bêbado, me peguei dançando com ela na sala, completamente insano e louco de desejo. Quando a deitei no sofá, ela sumiu por entre minhas mãos. Cai sobre o móvel, frustrado.
Mesmo envolto de sentimentos tão difíceis de lidar e segurar a barra, eu continuei indo as sessões, mesmo não conseguindo atingir os objetivos da terapia. Estava perturbado com aquela imagem. Levava flores, bombons, livros. Ela sempre foi tão educada. Até o dia que disse que não poderia mais me atender, pois eu estava confundindo nossa relação e o tratamento não apresentava resultados positivos. Ela me indicaria outro psicólogo. Eu não aceitei.  Sai gritando e batendo as portas do consultório. Deixando-a assustada e receosa comigo.
Dia seguinte tentei me retratar, ela foi educada e diplomática, mas insistia que não poderia mais me atender. Meu erro. Fiquei mais uma vez furioso. Num ato desesperado parti pra cima dela. Tentando beija-la. Fui expulso do consultório por alguns homens que nem sei de onde vieram.
Retornei para meu apartamento transtornado, metade de mim se arrependia, a outra estava furiosa. Queria tê-la de qualquer modo. Juntei o dinheiro que tinha, comprei garrafas de vinho e algum pó. Passei a noite num submundo particular, onde só existia ela e eu. Obcecado, queria mais. Tinha certeza que ela me queria, o modo como me olhava quando eu a elogiava, ela também era culpada por aceitar durante todo esse tempo meus carinhos e amizade. Esses pensamentos foram tomando forma na minha cabeça e a ideia de que deveria retornar ao consultório também.
Sem dormir, comer. Sai cedo do apartamento, certo de que ela deveria me entender. Esperei a secretária entrar e fui atrás, fazendo ela de refém trancada no banheiro. Não muito tempo depois chegara a psicóloga, sem saber pra onde caminhava, entrou a porta olhando celular e dando bom dia para a recepcionista, sem atentar que era eu sentado atrás da mesa. Quando viu assustou-se e quis sair, mas terminou caindo. Minha oportunidade para fechar a porta principal e buscar a redenção.
Meio sem jeito e bastante transtornado a ataquei pedindo desculpas, implorando compreensão, falando dos meus sentimentos e o quanto precisava dela comigo. Ela me olhava sem aquele sorriso lindo, assustada, acabrunhada e como alguém nesta situação passou a me empurrar, gritar por socorro. Num só tempo, a recepcionista também batia na porta do banheiro e gritava socorro. Ela devia estar com o celular. Não demorou muito para que outras pessoas começassem a bater na porta do consultório insistentemente. Ela me dizia que eu havia perdido que deveria me entregar e que tudo ficaria bem.
Eu só pedia que ela me olhasse de novo daquele modo, com o sorriso... Quis beija-la, ela me estapeou. Fiquei em fúria e a estapeei de volta. Deixando-a no chão. Tentei me desculpar, tarde demais, ela estava furiosa e gritava bastante. Tentei me aproximar, ser mais cordial, mas ela me arranhava e me empurrava. Eu a queria, tudo aquilo estava me excitando. Eu a agarrei mais forte, joguei no chão e queria possui-la. Ela lutava bastante, gritava e esperneava. Até que quis cala-la e quase a sufoquei.
Os homens que batiam insanos na porta conseguiram arromba-la e viram uma cena de filme. Eu, o vilão, sobre a mocinha. Todos juravam que a tinha estuprado. Enfurecidos me atacaram, me batiam e deflagravam insultos. Porém, num ato de sorte consegui escapar, caindo ainda no corredor, levantando continuei correndo para sair do pequeno prédio comercial no centro da cidade. O alarde no prédio foi geral. Todos saíram correndo atrás de mim.
Consegui engana-los e descer pela escada de incêndio que dava para um beco. A rua estava deserta, calma, poucas pessoas eram vistas. Até que um dos homens que me caçava me avistou e avisou os demais. Num instante eu estava cercado por homens que me espancavam e me insultavam. Terminado a sessão de violência em plena via pública, eu já não enxergava, somente escutava longe as pessoas falarem a meu respeito, algumas pessoas falavam que era louco, que já vinha ameaçando a psicóloga. Uma viatura passou no lugar e foi averiguar o fato.
Ele estuprou uma mulher, além de estuprador era louco, tinha mesmo que morrer – dizia um homem desconhecido. E no meu último fio de consciência esforçava-me para lembrar onde já conhecia essa história...meu sonho...
Depois de morto, estamparam no jornal “estuprador é morto em via pública”, bem como diversos depoimentos de pessoas que se diziam “cansadas de loucos e bandidos como eu”, que a “justiça do povo era sempre mais eficaz”, que “o povo sempre faz justiça com as próprias mãos”.    

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